quinta-feira, 28 de novembro de 2019

História de Nada

(Acendem-se as luzes)
Coro: Esta é uma história cheia de ar. Tem ar por dentro e por fora. É oca e desinteressante, sem graça nem sabor. É como remédio que sabe mal e não cura. É como uma paisagem sem verdura nem bicharada. Promete silêncios sem eco.
Esta história é o que é. Nada. Por isso a contamos. É a história de um escultor desinteressante que leva uma vida aborrecida e que esculpe pedras mudas e sonsas. Na oficina onde se encontra este artista, não há movimento, não há serviço, não há moscas, não se passa nada.  
Sebastião: Ah, se ao menos tivesse dinheiro para poder pôr comida na mesa e pagar as minhas dívidas… Mas os tempos não são favoráveis para pedreiros e escultores. O mais certo é que eu tenha de escolher outro ofício. Não tenho clientes há meses. Ah, como me aborreço. Por favor, Deus meu, dai-me uma tarefa que esteja à altura do meu génio. E que me encha a bolsa, é claro.
Estranho: Oh, da casa! É gente boa. Ouvi dizer que por cá trabalha Sebastião, o escultor. É verdade? Não me enganei na morada?
Sebastião: Sim, é o próprio. O que posso fazer por si?
Estranho: Tenho um pedido a fazer e prometo que pago bem.
Sebastião: Diga, diga! Se tiver a ver com burilo e escopro não há nada que eu não faça. Eu e a pedra somos amigos de longa data.
Estranho: Pois bem… Sou proprietário de um palacete esplêndido situado numa região esplêndida com um jardim esplêndido ao qual não faltam árvores esplêndidas, canteiros, esplêndidos, sebes esplêndidas, mas…
Sebastião: Mas…
Estranho: Sente-se ali que falta algo de esplêndido na fachada do palacete esplêndido…
Sebastião: Uma estátua… esplêndida?
Estranho: Isso! Uma estátua esplêndida, a completar todo aquele esplendor. Mas o que eu tenho em mente para a entrada… Sabe… Não é tarefa para amadores…
Sebastião: Falai sem receio, senhor. O que quereis? Não há nada que seja demasiado complicado para mim. Eu faço tudo… Tudo!
Estranho: Bom… Na minha região, há moinhos, milhares deles. E porquê? Porque o vento sopra aí todo o ano, dia e noite, sem descanso. Nunca manso. Logo, a meio do jardim, ficaria bem uma escultura do Vento.
Sebastião: Uma escultura do Vento? Ouvi bem?
Estranho: Sim, uma escultura do Vento. Acha que tem o talento requerido para aceitar o meu desafio?
Sebastião: Bem, claro. Tendes a certeza que não preferis um moinho em alabastro?
Estranho: Não, meu caro. Quero o Vento. Em mármore. É pegar ou largar.
Sebastião: Bem… Nesse caso, tereis o que pretendeis. Uma linda escultura do Vento.
Estranho: Esplêndido! Voltarei na primeira noite de lua cheia para reclamar o que é meu. Tome. Pago adiantado. Não me desiluda.
(Apagam-se as luzes por momentos)
II
Sebastião: Ora qu’esta… Uma estátua tem forma e contornos enquanto que o Vento não tem nada disso. O Vento foge-nos quando o queremos apanhar e não se parece com nada que eu conheça, pois não se vê. Como vou eu representar numa estátua o que não vê e que não tem forma? Deus meu, socorre-me nesta aflição!
Duende 1: Bons olhos te vejam! Alegra-te, pois estão aqui os fabulosos Duendes do Lar. Não encontras nesta oficina melhor companhia.
Sebastião: Duendes do Lar. Faltavam-me cá estes!  
Duende 1: Escutámos a conversa, não fôssemos nós os maiores bisbilhoteiros que pode haver numa oficina de escultor! Pois é… Arranjaste lenha para te queimar. Dar forma ao Vento… Essa agora eu quero ver.
Duende 2: Suponho que queiras ideias? Ideias com pés e cabeça? Não me faças rir que fico com câimbras nos maxilares.
Duende 3: Não façam troça, camaradas! Mostrem mais respeito! Não se esqueçam que o Sebastião nunca nos faltou com nada. O que comemos e bebemos devêmo-lo a ele. Ajudêmo-lo e pronto!
Duende 1: Ora, sejamos realistas. O que sabemos nós acerca do Vento se nunca saímos de casa? Correntes de ar, sim, já as sentimos no pelo, sabemos o que são… Mas o VENTO! É outra matéria!
Duende 2: Como esculpir o Vento? Deixem lá ver… Hum! Não há como o desenhar.
Duende 3:  É bem verdade que não se pode burilar um gás. Sim, porque o ar é gás, e mais nada. Mas e se desenhássemos as suas qualidades? E se inventássemos forma para aquilo que não a tem? Baseados em qualquer coisa, claro!
Duende 1: Como assim, ó Serafim?
Duende 3: O ar move-se, não é? É como se fosse um sopro…
Duende 2: Mas o sopro é tão difícil de esculpir como o Vento, ó cretino.
Duende 3: Calma… Cada vez que falas, tenho borbulhagem nos intestinos. Tenham atenção ao que vou dizer… E se esculpíssemos um rosto a soprar? O sopro pressupõe que haja um soprador. Daí termos que esculpir um rosto. A soprar.
Duende 1: Um rosto com escalpe, pescoço e tronco? Bracinhos e perninhas?
Duende 3: Só um rosto: com uma farta cabeleira de remoinhos. Nada mais. O pescoço e o tronco, bracinhos e perninhas não estão lá a fazer nada. O que é fundamental é o sopro. E o rosto que o sopra.
Duende 2: E os remoinhos no escalpe, servem para quê? Para a piolheira?
Duende 3: Claro que não, idiota! Servem para que imaginemos o vento a circular… a girar… a dançar… a revolutear… Os remoinhos são ar a girar…
Sebastião: Parece-me bem. Para duendes de trazer por casa vocês são bastante competentes… Vou já reunir as ferramentas e pôr mãos à obra. Hoje, farei serão para adiantar trabalho. Agora, ide. Não tenho tempo para conversa fiada.
Duende 2: Ingrato! Vamos, compinchas. Vamos aliviar o frigorífico dos restos do almoço.
III
(Apagam-se as luzes por momentos)
Estranho: Vim em excursão com estes meus parceiros para saber se já terminou a obra que te pedi. Já a lua se apresenta em todo o seu esplendor no firmamento e seria esplendoroso que já tivesse alguma coisa para mostrar.
Companheiro 1: Olha lá! O teu escultorzinho está muito bem disposto. Está muito seguro de si. Querem ver que conseguiu talhar a pedra ao teu gosto?
Companheiro 2: Tu disseste-nos que era impossível esculpir o impossível. Mas que, de qualquer modo, irias confiar esse serviço a alguém que entendesse do ofício, a ver no que dava.
Companheiro 3: E olha que ele aparenta ter tido sucesso. Estranho-lhe as feições. Não lhe vejo os cantos dos lábios caídos. Pelo contrário! Os lábios têm as pontas espetadas para cima quase a tocar nas orelhas.
Sebastião: E tenho razões para isso! A obra está feita e acabada. Os prazos foram cumpridos e o contrato honrado.
Companheiro 1: Vamos dar uma espreitadela a esse milagre, se nos é permitido.
Sebastião: Se o meu cliente não tiver nada a opor, podereis ver o que fiz. Terei todo o gosto.
Companheiro 2: Que um relâmpago me fulmine agora mesmo se não é o próprio vento em pessoa que vejo diante de mim! 
Companheiro 3: Ai, o meu cabelo agita-se na sua presença e um frio me arrepanha as costas e me faz tiritar de frio. Já sinto um espirro a subir na traqueia. Vem aí resfriado. Ai que me constipo!
Sebastião: Lamento imenso, esqueci-me de vos dizer que esculpi o Vento do Norte. Daí o seu sopro ser gelado e desagradável. Agasalhem-se bem pois a noite vai estar fria.
(Apagam-se as luzes por momentos)
Coro: E assim damos por acabada esta história que é sopa sem tempero. Não salga nem amarga. É ar vivo que se roça em nós, que se abeira do nosso ouvido e suspira. Suspira e vai embora. Na largueza dos campos agita o mato e segue para onde bem lhe apetece. Não a vemos, mas ela está presente. Conta peripécias embora nem toda a gente lhe preste atenção. História, sopra e corre mundo. Reinventa-te e conta coisas novas. Coisas cheias de ar, e que te ouça quem te queira ouvir. Vai… Sopra…
(Apagam-se as luzes por momentos)
(Os atores saúdam o público e saem de cena)
(Apagam-se de novo as luzes)

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